Modelo de Sociedade

O Professor Domenico De Masi apresentou no Fórum Visão de Futuro Aquila a reflexão otimista sobre os rumos do Brasil. Antes do evento, a revista Viver Brasil entrevistou o sociólogo italiano e abriu espaço para que ele expandisse suas ideias sobre os modelos de sociedade e os impactos na vida contemporânea.

O Brasil precisa se livrar do complexo de vira-lata, porque é um país de Primeiro Mundo e modelo de sociedade harmoniosa e feliz. Material humano e riquezas naturais não lhe faltam, na visão do sociólogo italiano Domenico De Masi, autor do livro O Futuro Chegou – Modelos de Vida para uma Sociedade Desorientada. Mas para tanto, precisa resolver algumas pendências como a superação das desigualdades sociais, a corrupção, a violência e o déficit educacional. Essa análise da situação brasileira é o tema da palestra que fará no Fórum Visão de Futuro Aquila 2015, que vai reunir 500 líderes empresariais e do setor público. Para ele, o país vive um momento único. Após copiar os modelos europeu e norte-americano, pode trilhar seu próprio caminho. Mas teme que, se o atual governo não conseguir recuperar a sua credibilidade e prestígio, “o neoliberalismo tomará posse do país e o tornará escravo das grandes potências”.

O que mais chama a sua atenção no modo de vida do brasileiro?

O Brasil tem um PIB que o coloca em sexto lugar entre as economias do mundo, mas tem como vantagem preciosa recursos metaeconômicos, sempre mais escassos no restante do globo e certamente indispensáveis para a construção de um novo modelo de vida. Recursos que, todos somados, formam um país diferente. Falo da miscigenação, da abundante mistura de raças unidas a um baixo nível de racismo, falo do sincretismo cultural, do amor ao corpo, da sensualidade, da receptividade, cordialidade, musicalidade, capacidade de assimilar e metabolizar as contribuições externas, da hospitalidade, alegria, espontaneidade, tolerância, abertura ao novo, da tendência em enfrentar a realidade com positivismo, a se mover com desenvoltura entre vários padrões de comportamento, a reinterpretar a regras e linguagens, a considerar fluidas as fronteiras entre o sagrado e o profano, entre o formal e o informal, entre o público e o privado, entre o emocional e o racional. Junto a todos esses aspectos positivos, se acrescenta o crescente conhecimento dos grandes desafios que o país deve enfrentar e vencer: a corrupção, a violência, as desigualdades sociais e o déficit educacional.

As influências culturais que vão da Europa à África e a forma como reage às turbulências estariam entre as peculiaridades do brasileiro?

Segundo Darcy Ribeiro, a cultura brasileira tem três matrizes: a indígena, a portuguesa e a africana. Porém, futuramente, a essas três matrizes, se uniram aquelas trazidas para substituir os escravos por mão de obra assalariada: a suíça, alemã, italiana, polonesa, libanesa, chinesa, japonesa. Outros países no mundo também tiveram grande variedade de matrizes, mas somente no Brasil, as etnias, que compõem o povo, têm um relacionamento recíproco, que, mesmo se não é privado de racismo, permite uma convivência pacífica.

No livro O Futuro Chegou – Modelos de Vida para uma Sociedade Desorientada, o senhor pesquisou 15 modelos de sociedade e defende que o Brasil pode contribuir para a formação de um modelo global. De que forma?

Cada sociedade é formada por um modelo preexistente, pensado por guerreiros, sacerdotes, pensadores, exilados portadores de uma fé, de um paradigma, de um projeto. A Idade Média foi estruturada pela pregação de Cristo e pelas doutrinas elaboradas pelos padres da Igreja do Ocidente e do Oriente. A crença muçulmana nasceu e se desenvolveu pelo modelo ditado por Maomé e seus califas sucessores. A sociedade norte-americana nasceu sobre a base de um modelo que teria influenciado todo o Ocidente e que trazia sua inspiração do puritanismo protestante e das idéias iluministas. O modelo liberal que triunfou no século 18 e que até hoje influencia a economia, a política, deriva do pensamento de John Locke, de Adam Smith, de Alexis de Tocqueville e outros. A sociedade soviética tentou o modelo desenhado por Marx, Engels e Lenin. A sociedade industrial foi idealizada por Francesco Bacone, Adam Smith, Carl Marx, John Stuart Mill, em sua maior parte por pensadores iluministas e liberais. Nenhuma sociedade, exceto a atual, pós-industrial, nasceu assim rapidamente, quase por geração espontânea, sem um modelo predefinido, através do impulso, às vezes contraditório, do progresso científico, da globalização, da escolaridade difundida e da mídia de massa, ainda acrescentando a guerras mundial e fria. Sérgio Buarque de Holanda distingue a cultura espanhola simbolizada pelo lastro racional e planejador, da cultura portuguesa, simbolizada pela raiz emocional e improvisadora. A sociedade pós-industrial é como um semeador que reúne seus elementos sem um critério racional, lançando os cidadãos em um estado de confusão. Há 100 anos, o católico encontrava seu guia na Bíblia e nas encíclicas papais, o revolucionário nas obras de Marx, os anarquistas nas de Proudhon e os socialistas nas de Bernestein. Hoje, não sabemos diferenciar nem o que é belo do que é feio, o que é direita ou esquerda, vivo ou morto. Essa desorientação determina um estado de insatisfação, de crise, que gera obstáculos ao planejamento de nosso futuro. É necessário, portanto, construir um modelo capaz de explicar o presente e orientar uma jornada ao planeta inteiro, uma vez que a sociedade é globalizada. Convém para tal, examinar os principais modelos elaborados pelo homem e obter dessas grandes experiências, os ensinamentos que parecem ser os mais claros para desenhar um modelo capaz de nos ajudar a planejar nosso futuro.

Como seria esse modelo?

No livro analisei 15 modelos. O japonês e o protestante produziram mais riquezas, porém o católico clássico gerou mais humanismo. O modelo capitalista dos Estados Unidos produziu mais guerras do que o do Brasil e os brasileiros, que com seus 12.500 dólares per capita, são mais dinâmicos e positivos que os italianos com seus 36 mil e os franceses com 42 mil. Os modelos politeístas são menos intransigentes que os monoteístas. Cada um dos 15 modelos que analisei (indiano, chinês, japonês, hebraico, clássico renascentista, católico, muçulmano, protestante, iluminista, liberal, socialista, industrial-capitalista, industrial-comunista, pós-industrial, brasileiro) apresentam virtudes e defeitos, porém nenhum deles isoladamente é capaz de orientar o homem pós-industrial, portador de necessidades inéditas em relação a todas as gerações que o precederam. É necessário formular um novo modelo, válido para o mundo, e o Brasil pode contribuir. Os valores que eu defendo como uma característica da sociedade brasileira não foram inventados por mim: são tomados a partir de pesquisas científicas realizadas em colaboração com os principais especialistas brasileiros. Estes valores – estéticos, éticos, culturais – não têm o efeito primário de crescimento econômico, mas o bem-estar social. O Brasil deve ter a ambição de se tornar um grande herói, um modelo de sociedade harmoniosa e feliz.

Há uma adaptação ao mercado?

Os principais antropólogos e sociólogos brasileiros concordam sobre alguns dos pontos fortes do país: a miscigenação, a mistura abundante de raças, o sincretismo cultural, o amor pelo corpo, a socialização, a capacidade de assimilar e metabolizar contribuições externas. Há ainda a tendência para lidar com a realidade com sentimentos positivos. A estes devem ser adicionadas as qualidades culturais de universidades, empresas, grandes projetos. Em suma, o Brasil não pode mais cultivar o complexo de vira-lata: é de fato um país de Primeiro Mundo, com os direitos e obrigações que isso implica.

As desigualdades sociais e regionais parecem problemas de difícil solução. Ainda assim o senhor acredita que o Brasil pode encontrar o seu caminho em meio a essas denúncias de corrupção e mau uso do recurso público?

Desde quando venho ao país (há mais de 20 anos) sempre ouvi falar de corrupção, violência, analfabetismo e diferenças brutais entre ricos e pobres. Por sorte, com base em fatos reais, o analfabetismo diminuiu e a classe média cresceu.

O pais vive um momento difícil com a economia em processo de recessão, com o governo desacreditado e refém do Congresso Nacional. O que se pode esperar com todas essas turbulências?

Nos últimos 20 anos, graças a seus governos sociais-democratas, o Brasil deu grandes passos na distribuição da riqueza reduzindo a distância entre os mais ricos e os pobres. Em quase todo o resto do mundo, como demonstra Thomas Piketty (economista francês), os ricos ficaram mais ricos e os pobres, mais pobres, devido ao neoliberalismo. Agora, as forças neoliberais brasileiras e do restante do mundo buscam uma revanche contra a social democracia. Se o neoliberalismo vencer, a distância entre os ricos e os pobres aumentará novamente e com ela a violência.

Levando-se em consideração o que o senhor pesquisou sobre o Brasil, todo esse processo pode levar a um amadurecimento da democracia e a uma mudança na condução desse modelo de governo?

Se este governo não conseguir recuperar prestígio, credibilidade e eficiência, o neoliberalismo tomará posse do país e o tornará escravo das grandes potências mundiais.

O senhor chegou a achar engraçada a expressão complexo de vira-lata do brasileiro, mas isso não é também sinal de que há uma dificuldade em se encontrar um caminho próprio?

O complexo de vira-lata impede os brasileiros de tomarem ciência de que o país não é mais Terceiro Mundo, mas sim é uma das grandes potências mundiais.

Nas manifestações de rua foi possível perceber o aparecimento de grupos mais conservadores e um certo grau de intolerância entre os que apoiam e os que são contra o governo. O que pode resultar de toda essa movimentação?

Os movimentos sociais iniciados no Brasil, há algum tempo, têm características interessantes que podem influenciar positivamente o desenvolvimento do país. Uma característica está no papel determinante de coágulo desenvolvido pela internet, seguido imediatamente pela participação real nas manifestações de rua. Virtual e real caminharam juntos. Uma segunda característica está na ausência de um líder. Uma terceira é que o movimento se recusa a oferecer propostas: se limita a demonstrar exigências. Uma quarta característica está no escopo dos movimentos: expurgar a corrupção e a arrogância dos políticos, defender a dignidade e os direitos humanos, recusar o crescimento econômico que não se traduza em qualidade de vida, desmitificar a ideologia do crescimento como solução de problemas sociais. Fazer tudo isso fora dos monopólios dos partidos e dos sindicatos, dos quais se nota sempre menor precisão. Como todos os movimentos sociais, também esses do Brasil, mais cedo ou mais tarde, entrarão numa fase de calmaria, porém permanecem vivos na internet e no imaginário coletivo, prontos para voltar às ruas.

O desemprego não é um problema só do Brasil. A tendência é de que haja uma mudança na questão da empregabilidade?

O Brasil possui uma taxa de desemprego menor que a dos EUA e que da Itália. Contudo, com o progresso tecnológico e a progressiva substituição do trabalho humano pelas máquinas, o problema é mais alarmante neste século.

O senhor defende o ócio criativo. A sociedade caminha para isso?

O emprego diminui e os que querem trabalhar aumentam. Assim, cedo ou tarde, será necessário redistribuí-lo.

Qual a influência das novas tecnologias no ócio criativo?

Elas são determinantes porque permitem realizar o trabalho criativo em qualquer hora e lugar.

Muitos consideram que o senhor tem uma visão romântica do Brasil. Nesse período em que acompanha mais de perto o que acontece no país, teria mais um capítulo a acrescentar no seu livro?

Confirmo palavra por palavra o que escrevi.

Revista Viver Brasil – 1º de maio de 2015 – Entrevista, por Sueli Cotta com tradução de Mark Paladino

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